O que é fluência numa língua estrangeira?
Essa pergunta todo mundo se faz mais cedo ou mais tarde, pois todo mundo conhece alguém que diz falar uma língua fluentemente. Depois de estudar vários idiomas e de ler várias opiniões sobre o assunto, decidi escrever a minha opinião sobre o que é fluência.
Antes de dar a minha opinião, prefiro trabalhar com os conceitos mais difundidos entre as pessoas.
Conceito utópico: "Uma pessoa é fluente numa língua quando ela sabe TUDO sobre aquele idioma. Ela domina TODAS as regras de gramática e se você lhe perguntar o que significa uma palavra, ela raramente buscará no dicionário, pois ela tem um vocabulário extremamente abrangente. Ela raramente comete erros, pois ela conhece todas as regras da língua. Ela fala sem dificuldade sobre qualquer assunto."
Infelizmente esse é o conceito mais difundido por aí. Existe (especialmente no Brasil) uma ideia de que para aprender uma língua é necessário aprender tudo PERFEITO. Pessoalmente atribuo esse problema ao ensino de língua portuguesa no Brasil.
Explico melhor: No Brasil, as aulas de português servem quase sempre apenas para diminuir a autoestima linguística (quase inexistente) do brasileiro. Professores servem apenas para apontar erros de gramática, ensinar regras antiquadas (que todos devem seguir, mesmo que ninguém as use em lugar nenhum) e apontar o dedo na cara de todos os alunos para dizer "Meu filho, você não sabe português... isso que você fala é qualquer coisa, menos português". Bem, se você passa a vida toda (e são mais de 10 anos na escola) ouvindo da própria instituição educacional que você não domina nem mesmo sua própria língua (o que é mentira... brasileiros dominam seu próprio idioma, só que é um idioma diferente do ensinado na escola. A norma escrita, no entanto, exige treino - oferecido pela escola. Só que a língua não é só a norma culta escrita.), mas aceitando calado que existe uma "forma perfeita" de se falar um idioma, é óbvio que os brasileiros sempre se tornam inseguros em qualquer língua que tenham que aprender, sempre buscando uma perfeição inalcançável.
Ou seja: se não for de forma PERFEITA, então você, na verdade, não fala o tal idioma.
E a mesma cena da sala de aula é repetida no dia-a-dia... Uma pessoa pode estudar na Alemanha, escrever toda uma tese de doutorado em alemão, dar palestras em alemão impecável, mas AAAAAAAAAI dele se não tiver também um sotaque impecável... e ai dele se trocar um "die" por um "das"... logo, logo aparecerão os juízes para dizerem "Vejam... mas ele não é fluente, pois se fosse fluente mesmo não teria esse sotaque forte.. não teria trocado o gênero da palavra". Ai do professor de alemão que não entender TUDO daquela música ou daquele texto. Se ele deixar de entender uma única palavra: PRONTO! Mau professor. Se não souber tudo, então não é fluente.
Em outras palavras: as pessoas acreditam numa forma da língua que seja PERFEITA. Eles mesmos não a dominam, não conhecem ninguém que a domine (pois até os alemães nativos cometem erros), mesmo assim um falante fluente é aquele que não comete nenhum erro. Pergunto: alguém acredita mesmo que haja pessoas que saibam realmente TUDO sobre um idioma? Que conheçam TODAS as palavras de um dicionário? Que já tenham lido TODAS as regras descritas em TODAS as gramáticas?
Por esse mesmo motivo, muitos brasileiros desistem de aprender idiomas, pois só abrem a boca depois que têm a certeza de que não estão cometendo nenhum erro, se frustram mais do que o normal a cada erro cometido e exigem uma perfeição inatingível. A meu ver, esse conceito é o mais desestimulante, apesar de comum.
Conceito simplório: "Uma pessoa é fluente quando ela consegue usar a língua (sem dificuldades) em todas as situações nas quais ela precisa usar aquele idioma".
De cara, esse parece ser um conceito melhor do que o primeiro. De fato, aqui não se fala sobre perfeição linguística, mas a capacidade de a pessoa usar a língua de acordo com as suas necessidades e sem maiores dificuldades. Apesar de este conceito parecer ideal, ele não é muito exato.
Tomemos o exemplo fictício de uma cidade turística como o Rio de Janeiro. Digamos que um vendedor de praia aprenda a oferecer seus produtos em alguns idiomas: inglês, espanhol, italiano... de acordo com os turistas que costumam estar nas praias. Com o tempo, digamos que ele consiga realmente aprender tão bem seus diálogos com os clientes que ele aprenda a oferecer o produto, dizer os preços, fazer ofertas especiais e ainda convencer (através de boa lábia) o cliente a comprar... Será que este vendendor é FLUENTE em vários idiomas? :-)
(Deem uma olhadinha no vídeo abaixo, por sinal)
(Baseado no conceito utópico de fluência, tem gente que afirma por aí que que se você não souber todos os sotaques, dialetos, linguagens regionais, gírias etc. você não é fluente naquela língua... ou seja, a pessoa só será fluente em alemão, quando aprender todos os dialetos, expressões, gírias de todos os países que falam alemão etc. Não caiam nessa, gente!)
Assim como o vendedor fictício do qual falei antes, há milhares de pessoas no mundo capazes de usar diversas línguas no dia-a-dia, mas apenas em contextos muito específicos. O chinesinho que vende pastel no Brasil ou o mesmo que trabalha num restaurante chinês aqui, eles provavelmente não saberão discutir sobre política externa, nem saberão escrever um artigo de opinião para um jornal em português/alemão, mas seu conhecimento será suficiente para fazerem aquilo que necessitam fazer. Ou seja, elas ainda sabem bem menos do que uma pessoa dita "fluente". Seria injusto considerar que o inglês (ou espanhol, ou alemão...) do vendedor da praia seja tão fluente quanto o de pessoas que dominam a língua nas suas mais diversas formas, até a linguagem culta. Se todo mundo que soubesse usar alemão apenas nas situações nas quais precisam da língua fosse considerado fluente, haveria milhões de turistas fluentes em alemão, pois estes sabem muito bem pedir a sua cerveja e pagar as contas. Fluência tem que ser mais do que isso.
O lado bom desse segundo conceito é que ele é mais voltado para a prática. Se o brasileiro soubesse o porquê de ele estar aprendendo um idioma, poderia então se concentrar em alcançar esse objetivo prático, em vez de se preocupar demasiadamente em falar perfeito. Traçar objetivos comunicativos pequenos ao longo do aprendizado pode levar ao domínio maior da língua. Em vez de planejar "tenho que aprender alemão perfeito, sem cometer erros", melhor colocar como meta "Esse mês quero aprender como ir ao médico e explicar o que estou sentindo, bem como o nome de sintomas e doenças que eu tenho". No momento em que você conseguir usar o seu alemão para ir ao médico e conversar com ele, terá alcançado um objetivo prático e comunicativo, em vez de se concentrar exclusivamente com regras de gramática.
Conceito objetivo: "Quando uma pessoa atinge o nível C1-C2 do idioma, pode-se considerar fluente".
Eu gosto deste conceito, pois ele é bem objetivo. Ou seja, podemos saber o que é uma pessoa de nível C1-C2 ao lermos o Quadro Comum Europeu de Referência para línguas. Apesar de ser um quadro europeu, ele também pode ser usado em qualquer parte do mundo como "referência". Outros países podem desenvolver outros quadros e outros níveis, mas o que importa é ter níveis altos a serem atingidos.
Outra coisa boa desses níveis é que os objetivos são REAIS. Nele não há coisas do tipo: "Um falante do nível C2 fala perfeito sem cometer nenhum erro".. .a partir do C1 os erros vão ficando mais raros.. como nessa passagem:
"Nível C1: Mantém um nível elevado de correção gramatical de forma constante; os erros são
raros e difíceis de identificar"
Mesmo assim, é possível cometer erros em níveis altos de competência linguística. O mais alto nível do QCER requer que a pessoa domine a língua tão bem que eles usam o termo "muttersprachähnlich" (ou seja, parecido com as competências de um falante nativo). Mas parecido não é idêntico. Ou seja, é possível alcançar um nível altíssimo na língua e ainda assim você não a falará como um nativo. Isso é muito importante de se dizer, pois muita gente acha que alcançar um C2 quer dizer "falar perfeito".
Há de se lembrar também de que o QCER classifica cada habilidade linguística de forma separada. Ou seja, uma pessoa só pode ser C2 na compreensão de leitura, mas ser um B2 na habilidade oral interativa e ser um C1 em monólogos (ao dar uma palestra, por exemplo), bem com ser B1-B2 na pronúncia fortemente marcada pelo sotaque estrangeiro. O QCER tem várias e várias tabelas com escalas para definir o nível de cada coisa. Se você ler o que cada nível significa e uma pessoa realmente chegar ao nível C1 e C2, pode-se ter certeza de que ela domina aquela língua muito bem, não só pra vender o seu peixe na praia, mas também na escrita, no ambiente profissional, acadêmico etc.
Quer saber se você tem o nível C2? Então faça o teste do nível C2 do Instituto Goethe. Mais informações
aqui. Quer se preparar para a prova do nível C2? Dá pra comprar materiais preparatórios
aqui e
aqui.
Eu gosto desse conceito por ele ser alcançável e baseado em situações e pessoas reais. Além disso, os níveis C1 e C2 contemplam também o uso formal da língua em todas as suas formas: literário, científico etc. Ou seja, a pessoa que chega a este nível é exposta a vários usos da língua, desde os mais simples até os mais formais.
P.S. Fazer um curso B2 não quer dizer que você tenha o nível B2. Para saber se você tem um determinado nível o que conta é a sua autoavaliação. Leia os descritores de cada nível e pergunte para si mesmo se seu nível é igual ao que está descrito no QCER. Não adianta fazer um curso B2 de alemão e não conseguir manter uma conversa em alemão. O que importa é o que você é CAPAZ de fazer, não o nível que consta na capa do livro ou no seu curso. Na dúvida faça os testes de proficiência que comprovem o seu nível.
Leia mais sobre os níveis europeus
aqui.
Leia mais sobre testes de alemão
aqui.
Mas eu ainda tenho um conceito pessoal.
Conceito do Fábio. "Uma pessoa pode dizer que é fluente num idioma quando realizar atividades naquele idioma não são mais um peso difícil de carregar, quando você se sente profundamente à vontade ao usar o idioma nas mais diversas situações, mesmo em situações formais"
Faça os seguintes testes:
1) Um grupo de amigos de várias nacionalidades decide se encontrar. Todos conversam em
alemão alegremente sobre diversos assuntos: política, clichês, as melhores cervejas, algum filme que viram recentemente, viagens, contam piadas etc. Você não fica só OUVINDO as conversas.. você participa também. Ao terminar a noite você pensa que a conversa teria sido melhor se tivesse sido em inglês? Ou você volta pra casa satisfeito com suas conversas da noite, sem ter aquela sensação de ter falado menos por não saber alemão suficiente? Se falar alemão não é mais um peso pra você, se você não
sente mais a necessidade de trocar para uma outra língua que você ache mais fácil, então você é FLUENTE em alemão.
2) Você tem que escrever uma carta em alemão para se candidatar a um emprego. Você vai participar de uma entrevista de emprego em alemão. Você mesmo(a) redige a carta tendo a certeza de que ela não contém grandes erros. Talvez peça a algum nativo para que a leia, apenas para garantir (afinal é um emprego que está em jogo). O nativo não encontra quase nenhum erro em sua carta e te dá uma ou outra sugestão. A entrevista não te aterroriza por ser em alemão. O seu nervosismo não está na língua, mas apenas na forma como a entrevista será conduzida e se causará uma boa impressão. Você se sente tão à vontade com a língua que durante a entrevista não estará mais preocupado com o acusativo ou dativo, mas apenas com o conteúdo do que diz e ouve, então você é FLUENTE em alemão.
Há coisas que serão difíceis de fazer em uma língua estrangeira, seja ela qual for. Escrever uma tese ou dissertação numa língua estrangeira, mesmo que este seja espanhol, inglês, é e será sempre difícil. Eu JAMAIS entregaria um artigo científico para publicação ou uma TESE sem a leitura de revisores em língua materna. Erros SEMPRE existem, mesmo na língua materna. O ideal é que haja poucos erros de gramática. Eu consigo me conformar com erros de estilo, pois aprender a escrever trabalhos acadêmicos é uma tarefa árdua, até no próprio idioma. Encontrar a palavra certa, o termo certo etc. nem sempre é fácil. Mas quantas pessoas nunca PRECISARAM escrever um trabalho acadêmico, nunca fizeram uma faculdade? Será que é justo dizer que uma pessoa não é fluente, apenas por ela nunca ter escrito um trabalho acadêmico?
É muito difícil comparar "fluências". A meu ver, uma pessoa pode ser chamada de fluente numa língua estrangeira quando ela é exposta às mais diversas situações de uso da língua e se sente à vontade para usá-la. A pessoa pode ser fluente na fala, mas não na escrita (ou vice-versa). Por isso acredito que pessoas que não escrevam muitos textos (por não terem necessidade de escrever), também consigam falar uma língua fluentemente.
Sei que meu conceito não é exato, mas ele serve pra mim e também prevê coisas que para mim sempre serão difíceis (como escrever trabalhos acadêmicos). Isso não me frustra, pois conheço também linguistas alemães que falam um português excelente que pedem para que alguém corrija seus textos. Prefiro trabalhar com conceitos reais aplicáveis a pessoa reais, não a deuses.
Pra terminar:
quando você vai responder à pergunta "Sprichst du Deutsch?" com um sonoro "Jaaaaa" em vez do "Mais ou menos.. ein bisschen... ich versuche es"? Ainda baseado no conceito utópico de perfeição, há muitos brasileiros que passam a vida toda dizendo que não sabem alemão, esperando essa perfeição chegar. Eu sempre digo que falo alemão (e muito bem, obrigado!), justamente por eu morar na Alemanha e não ter mais nenhuma sensação de que a língua esteja me impedindo de realizar alguma coisa. Sinto-me à vontade para fazer cursos em alemão, participar das discussões em alemão no meu trabalho ou até mesmo falar em público em alemão. Já fui exposto a diversas situações de uso da língua, até mesmo aos seus usos mais formais (na faculdade) e minha dissertação de mestrado também foi escrita em alemão. Se tudo isso não for suficiente pra que eu diga que falo alemão, o que será então?
É claro que tem dias em que penso "Chega de alemão! Quero falar português hoje." Isso acontece, pois alemão não é minha língua materna, nem nunca será. Eu não tenho problema com isso. É óbvio também que vai ter sempre aquele pessoal chatinho pronto pra apontar o dedo e dizer "Mas olha, ele errou". Eu não ligo. Isso não me faz menos fluente. E não deveria fazer ninguém menos fluente. Também não me sinto menos fluente por não saber dizer algo em alemão. (Sou um ser humano, não um dicionário ambulante).
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Quando você vai dizer "Ja, ich spreche Deutsch" e sair do "Mais ou menos"? |
A todos aqueles que leem o blog desejo que consigam alcançar seus objetivos no aprendizado do alemão. Sei que entre os leitores, há muitos falantes FLUENTES de alemão. Espero que possamos todos nos encontrar um dia e conversar em alemão, descontraídos sem nos preocuparmos tanto com dativos, acusativos e nominativos :-)
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