27 de novembro de 2014

Fazer faculdade na Alemanha é de graça

Recentemente saiu a grande notícia. O último estado alemão que ainda cobrava taxas (Baixa-Saxônia) para estudar em suas universidades públicas aboliu a famosa Studiengebühr (taxa de estudo) que trouxe muitas controvérsias durantes os últimos anos. De fato, as universidades alemãs precisam de dinheiro e estavam (estão!!!!) tendo dificuldades para se manterem apenas com os recursos dados pelos governos e iniciativas privadas (não é só no Brasil o problema com os investimentos em educação). Alguns anos atrás muitos estados começaram a exigir que os alunos pagassem uma taxa de 500 Euros por semestre, que seria usada para suprir diversos gastos extras para melhoria da universidade (cada estado fez o seu próprio plano de como iria usar o dinheiro arrecadado). Houve muitos protestos, muitos estudantes preocupados em saber de onde tirar esses 500 Euros semestrais. Bem, as universidades da Baixa-Saxônia (a partir deste semestre) e da Baviera (desde o ano passado) foram as últimas a abolirem essa cobrança.

Mas será que estudar na Alemanha é totalmente gratuito?
Universidade de Colônia
Infelizmente não. Mesmo sem as taxas de 500 Euros, há outras taxas que os estudantes têm que desembolsar semestralmente. É o chamado Semesterbeitrag (contribuição semestral). Essa "contribuição" é obrigatória e serve para pagar custos com o DCE (que em alemão se chama AStA) e outros custos de administração. Em muitas universidades serve também para pagar o ticket semestral de transporte. Esse valor varia de universidade para universidade (pode ficar entre 75 Euros e 278 Euros, dependendo da universidade). Lembrando que esse valor é cobrado por semestre e não por mês. (A meu ver é uma taxa justa, especialmente a do Semesterticket que dá direito ao estudante usar praticamente todos os transportes públicos de uma determinada cidade ou região por 6 meses).
Além disso, alguns estados decidiram cobrar a Studiengebühr (a mesma que foi abolida!) de estudantes que demoram muita para se formar. Ou seja, se o tempo normal de estudo for 3 anos, já se passaram 6 anos e você ainda não se formou, em alguns estados é possível que você tenha que pagar taxas. É um recadinho: "Ei, querido(a), tudo bem que a universidade é pública, mas não exagere".

Ah, então isso é uma pegadinha, né? Achei que fosse totalmente gratuito!
Nada nessa vida é de graça, amiguinh@. Mas pense pelo lado positivo. Nos EUA, por exemplo, o ensino superior é caríssimo. Se você vier de outro país, mais ainda. Você teria que desembolsar uns $20.000 dólares por ano. Existem países na Europa (por exemplo, a Dinamarca) onde somente cidadãos da União Europeia podem estudar gratuitamente. Quem for de fora PAGA e paga caro. Se você olhar o preço das mensalidades de universidades particulares no Brasil, verá também que os 278 Euros por semestre não são nada. Então estudar na Alemanha pagando apenas uma taxa semestral (na qual também está incluído o seu ticket semestral de transporte) é praticamente de graça. 

O que fazer para estudar na Alemanha?
Depende de tantas e tantas coisas.
Antes de qualquer coisa, informe-se sobre os cursos e universidades existentes, bem como sobre os prazos. O ideal é consultar o site UniAssist. É um site com muitas informações (em alemão e inglês) sobre o processo de seleção para uma universidade.
Pessoalmente eu também gosto muito do sistema de busca da página do DAAD. Lá você pode procurar por várias opções: tipo de curso, área de estudo, tipo de universidade etc. Dá uma olhadinha aqui.

Depois de achar as informações sobre os prazos de inscrição e requisitos, mãos à obra pra juntar a papelada. As universidades aqui normalmente não pedem nenhum tipo de visto no processo de inscrição. O visto de estudante você só consegue depois de já ter sido aceito na universidade, pois é essa confirmação de vaga que vai te dar direito ao visto.

Eu só tenho o Ensino Médio completo. Dá pra fazer faculdade na Alemanha?
Normalmente o Ensino Médio não é suficiente, pois na Alemanha é exigido que os alunos tenham concluído o Abitur (que é uma espécie de Ensino Médio alemão preparatório para a universidade). Como a escola na Alemanha demora 1-2 anos a mais que no Brasil (dependendo do estado), é exigido que os estudantes estrangeiros com Ensino Médio façam um ano de escola preparatória (Studienkolleg) para a faculdade ou façam 4 semestres de faculdade no Brasil antes de tentar transferir pra uma universidade alemã. Geralmente eles analisam caso a caso.

Tem Vestibular?
Não. O processo de seleção é feito através de candidaturas, como você estivesse buscando um emprego. Cada curso lança seu calendário de seleção e publica a lista de documentos exigidos. Você envia a documentação exigida junto com a uma carta explicando seus motivos para se candidatar a essa vaga. Depois é só esperar uma resposta. Às vezes você pode ser convidado para uma entrevista antes de ser aceito pela universidade. Ou seja, as notas da escola e/ou da faculdade contam também na obtenção de uma vaga.

Precisa saber alemão?
O tanto de alemão necessário para estudar numa faculdade alemã vai depender de cada curso e de cada universidade. Não há uma resposta que valha para todos os casos. O ideal é você ler os requisitos no UniAssist ou no site de busca do DAAD. Para cada curso há uma lista de exigências. Alguns cursos exigem inglês e alemão. Há cursos completamente ministrados em inglês. Outros cursos podem ser completamente em alemão.

Os testes de proficiência geralmente aceitos para comprovar o alemão são o TestDaF, o DSH ou outros certificados de nível C1 ou C2. A nota exigida varia de acordo com cada curso. Cursos na área de Humanas, Direito etc. podem exigir melhores notas (já que requerem muita leitura). Cursos nas áreas técnicas podem aceitar estudantes com notas mais baixas nesses testes de alemão e exigir notas melhores de inglês. Para fazer Letras ou Tradução podem ser exigido comprovar outras línguas estrangeiras. Em alguns doutorados na área de Humanas podem ser exigidos conhecimentos de Latim. Como disse antes: quem define isso é a própria universidade. É só ler os requisitos.

Conseguir o visto de estudante é difícil para brasileiros?
Não. Diferente de outros países (como os EUA, por exemplo), onde mesmo depois de comprovar tudo o seu visto pode ainda ser negado, a Alemanha não costuma negar vistos de estudante caso toda a papelada exigida esteja adequada. As coisas principais são: um comprovante de que você poderá se manter durante os estudos sem trabalhar (isso pode ser comprovado através de uma declaração de bolsa de estudos ou através de dinheiro em conta no banco, por exemplo), seguro-saúde, comprovante de matrícula (ou de aceitação) na faculdade e comprovante de moradia. Outros documentos da lista podem variar, mas estes são os principais. A ideia é simples: se você tem como se manter, tem onde morar, tem um seguro de saúde e tem uma vaga na universidade, não há nenhum motivo para te impedir de estudar na Alemanha. O visto de estudante dá direito a 120 dias de trabalho por ano ou 240 dias se o trabalho for de meio-período. Durante o período de aulas, o estudante não deve trabalhar mais do que 20 horas por semana para não comprometer os estudos.

Se o seu problema for conseguir uma bolsa de estudos, fique atento ao blog. Nós sempre divulgamos editais de bolsa de estudo, seja pelo CsF como por outras organizações. Para saber sobre as bolsas de estudos que divulgamos, clique aqui.

Onde posso me informar mais?
O DAAD organiza muitas palestras no Brasil sobre o que fazer para estudar na Alemanha.
Haverá alguns eventos informativos nos próximos dias sobre doutorado (28,29 e 30 de novembro). (Informações: clique aqui)

25 de novembro de 2014

Palavras compostas curiosas da língua alemã

Alemão é uma língua cheia de peculiaridades na formação do seu vocabulário. Uma de suas características é poder juntar palavras para formar outras. Algumas junções são mais óbvias, outras menos.  Aqui vão alguns exemplos:

sapato para as mãos??!?!
1) Handschuhe = Luvas
Hand (mão) + Schuhe (sapatos) = ao pé da letra "sapatos para a mão".

2) Baumwolle = Algodão
Baum (árvore) + Wolle (lã) = ao pé da letra "lã da árvore"

3) Flugzeug = Avião
Flug (voo) + Zeug (coisa) = ao pé da letra "coisa que voa"

4) Feuerzeug = Isqueiro
Feuer (fogo) + Zeug (coisa) = ao pé da letra "coisa (que dá) fogo"

5) Schlüsselloch = buraco da fechadura
Schlüssel (chave) + Loch (buraco) = ao pé da letra "buraco para a chave". A fechadura se chama Schloss. Mas o buraco da fechadura, é chamado de buraco para a chave.

6) Schadenfreude 
Schaden (prejuízo, dano) + Freude (alegria) = é a alegria pela desgraça alheia. Parece uma palavra péssima, mas todo mundo já sentiu Schadenfreude alguma vez. Por exemplo, quando você ri do tombo de alguém, isso é Schadenfreude. Quando você fica feliz em ver uma pessoa de quem você não gosta (um político, por exemplo) se dando mal, isso é Schadenfreude.

7) Eifersucht = ciúme
Eifer (zelo) + Sucht (vício) = ao pé da letra, vício em zelo. O ciumento é o eifersüchtig. O legal é que em outras línguas o ciúme tem a ver com zelo. Em espanhol, ciumento é celoso. E em inglês é jealous (se você trocar o j por z, perceberá que a raiz é a mesma).

8) Kaltmiete / Warmmiete
kalt (frio) + Miete (aluguel) = ao pé da letra "aluguel frio". É o valor do aluguel, sem nenhum acréscimo dos custos extras de moradia.
warm (quente) + Miete (alguel) = ao pé da letra "aluguel quente". É o valor do aluguel acrescido do valor do condomínio (geralmente água e aquecimento).

9) Fahrstuhl = elevador
fahren (ir, conduzir, dirigir) + Stuhl (cadeira) = ao pé da letra "cadeira condutora", ou seja, um cadeira que te leva a algum lugar. Mas o elevador não é bem uma cadeira, né? Existem também outras palavras para elevador: Aufzug (que vem de aufziehen - içar) e Lift (que vem do inglês).

Curiosidade: a palavra bicicleta em alemão é feita com o mesmo radical "fahr(en) + Rad" - Fahrrad - a "roda condutora".

10) Feierabend = fim do expediente
feiern (festejar) + Abend (noite) = ao pé da letra, noite de festa, noite comemorativa. Muita gente erra ao traduzir a palavra como happy hour. A palavra Feierabend não quer dizer que a pessoa vá beber com amigos, nem precisa ser à noite. Mesmo que seu expediente termine às 14:00 e que você vá direto para casa, você também pode usar a palavra. Ela quer dizer realmente "fim do expediente". Nada impede que você saia com seus amigos para um Happy Hour depois do trabalho.

11) Augenblick = momento, instante
Auge (olho) + n (consoante de ligação) + Blick (vista, olhar) = ao pé da letra seria algo como "a vista ocular", ou simplesmente, o olhar ou a olhada, a olhadela. Isso me lembra muito a expressão portuguesa "num piscar de olhos", ou seja, algo que vai ser feito rapidamente, num instante, num momento. Quando em português se diz "Um momento, por favor", em alemão se diz "Einen Augenblick, bitte" o que sempre me fez lembrar do "piscar de olhos" do português. Um sinônimo é a palavra Moment.

12) Luftschlange = serpentina
Luft (ar) + Schlange (cobra) = ao pé da letra "cobra de ar".

13) Glühbirne = lâmpada
glühen (arder, estar em brasa) + Birne (pêra) = ao pé da letra, "pêra ardente", ou melhor "incandescente". São aquelas lâmpadas que tradicionalmente têm um formato de pêra.

E você se lembra de mais exemplos interessantes?

20 de novembro de 2014

Vida na Alemanha - Racismo na Alemanha

Para começar, aqui vão dois vídeos de um negro alemão onde ele relata perguntas idiotas que ele tem que ouvir:




Hoje é dia 20 de novembro. Dia da Consciência Negra. Um dia que tenta dar ao negro a consciência de sua negritude, a consciência do que a cor de pele representa atual e historicamente. Eu não sou negro. Não me identifico como negro, apesar de saber que, como brasileiro, deve haver muito sangue e muitos genes de origem africana em mim. Eu nasci com aquela cor de pele típica do brasileiro mestiço: nem tão branca, nem tão negra. Olhos e cabelos castanhos. O famoso "pardo" das estatísticas do IBGE. Eu tenho consciência de que não sou branco. E consciência de que não sou negro.

Por estar na parte do meio dos inúmeros tons de pele existentes, eu nunca passei pelas mesmas situações de racismo no Brasil que meus irmãos negros. Nem ganhei os privilégios de ter nascido branco numa família de classe média. Como nunca havia sofrido racismo, eu era mais um a não demonstrar nenhuma empatia pelo sofrimento do negro. Afinal, ninguém nunca havia me julgado pela minha cor de pele. Nunca.

Aí eu vim para a Alemanha. Sim, aquele país marcado eternamente por ter começado uma Guerra Mundial com uma política racista. O mais curioso é que a Alemanha foi destruída por um país que também tinha uma política racial segregacionista. Mas parece que ninguém vai pros EUA se perguntando sobre racismo. Mas todo mundo parece ter medo de encontrar alemães defendendo os ideais do seu ditador do passado.

A primeira vez que eu ganhei consciência de que a minha aparência chamava a atenção foi ao morar aqui. Foi na Alemanha a primeira vez que ouvi na vida: Você tem olhos bonitos! Essa frase, já ouvida várias vezes da boca de alemães, me deu consciência de que olhos castanhos podem ser bonitos. Numa terra em que boa parte da população tem olhos claros, ter olhos escuros é o diferencial. Eu tive a certeza de que jamais ouviria isso no Brasil, um país acostumado a idolatrar artistas brancos de olhos claros. Isso me deu consciência.

Numa outra ocasião ouvi de uma colega, alemã, branca "Nossa como eu queria ter a sua cor de pele". Respondi, atônito, "Sério? Por quê?". "Porque queria poder tomar sol, me bronzear, quando vou à praia fico vermelha, vocês se bronzeiam. É mais bonito". Essas e outras experiências me deram consciência de que em terras germânicas eu não passo despercebido como no Brasil. Aqui eu sou considerado "dunkelhäutig" (pele escura). E a minha pele chama a atenção.

Um dia aprendi que havia palavras tabu na Alemanha. Palavras que causam desconforto à maioria dos alemães. Todas elas são palavras que foram usadas e abusadas pela ditadura nazista. Uma delas é a palavra Rasse (raça). Hoje em dia a palavra Rasse só é usada quando se fala sobre o pedigree de animais, mas não mais sobre humanos. É claro que se pode dizer que uma pessoa é branca ou negra. O problema é chamar isso de "raça". Alemães não gostam desse termo. Também descobri que a palavra Neger, antigo termo para "negro" é considerado racista hoje em dia, preferindo-se o termo schwarz, ou até outros termos como Schwarzafrikaner, Schwarzafrikanerin, Afroamerikaner, Afroamerikanerin, Afrodeutscher, Afrodeutsche. O doce conhecido como Negerkuss (beijo do negro) passou a ser chamado de Schokokuss (beijo de chocolate). Imagine o que diriam os alemães se soubessem que no Brasil há um bolo de chocolate chamado "nega maluca".

Chances iguais?
Depois de fazer mestrado na Alemanha, acabei achando emprego numa universidade, ou seja, as pessoas com quem convivo diariamente são pessoas com um alto nível de educação. Meus alunos alemães se chocam um pouco quando sabem que o IBGE, um instituto nacional de estatística, ainda faz contagem de "raça" no Brasil. Ficam mais chocados quando aprendem os termos usados pelo IBGE "branco, pardo, negro, AMARELO(???), indígena". Mas não se enganem. Mais chocados ficam quando veem as estatísticas das diferenças de salário entre negros e brancos no Brasil. Mais chocados ficam quando vão ao Brasil e aprendem dos próprios brasileiros a se "protegerem" dos "negros" na rua, já que serão "ladrões" em potencial. Mais chocados ficam quando fazem um semestre de intercâmbio nas universidades públicas brasileiras e se perguntam: "Cadê os negros nesta universidade?". Sim, todos estes debates e comentários se repetem nas minhas aulas sobre o Brasil na universidade. Alguns vão pensar: Ah, vai dizer que na Alemanha não existe racismo? Mas minhas aulas não são sobre a Alemanha, e sim, sobre o Brasil. O importante, para mim, é levar os alunos a refletirem sobre as experiências que terão, que têm ou que tiveram no Brasil para que entendam melhor os processos históricos que levaram às diferenças raciais no Brasil.

Essa consciência eu não ganhei no Brasil. Eu ganhei aqui na Alemanha. Ganhei aqui pois aqui sou tratado diferente. Por ser tratado diferente, pude ganhar empatia pelas pessoas no Brasil que também são tratadas diferentemente. Já fui tratado de forma racista na Alemanha? Claro. Uma das formas mais comuns de racismo aqui é o racial profiling da polícia. Qualquer ladrão aqui é descrito como südländisch. E com südländisch eles já estão dizendo: deve ter vindo de algum país do Sul. E do Sul pode ser desde a Itália, da Grécia, da Turquia quanto de qualquer outro país onde faça mais sol do que aqui, que deixe a pele num tom mais escuro do que aqui. Sim, já fui parado pela polícia a caminho do trabalho apenas por ser südländisch. Sim, já fui a única pessoa do vagão inteiro de um trem a ter que mostrar documentos e abrir mala para a polícia enquanto as pessoas do vagão olhavam para mim (sem fazer nada). Dá raiva? Dá. Estraga o seu dia e o seu humor? Estraga. Mas passa. Sabe por quê? Porque eu talvez passe por isso 1-2 vezes por ano. Enquanto nos outros 363-364 dias do ano eu sou tratado como gente, sou tratado como o rapaz dos olhos bonitos, o brasileiro que com certeza anda sempre alegre, fazendo festa, sambando ou sei lá o quê. Mas esses dois dias por ano em que algo assim acontece me deram a vaga consciência do que um negro passa no Brasil ao ser revistado ao sair de um loja sem ter roubado nada. Ao ter o seu caráter julgado pela sua cor de pele. É por isso que, quando sei de algum brasileiro revoltadíssimo por ter sido barrado na porta de uma discoteca alemã, penso nos inúmeros casos de negros brasileiros que são barrados, revistados, expulsos de locais brasileiros (shopping centers, lojas, boates etc.) sem que ninguém se revolte. E eu espero que esse brasileiro barrado na entrada da discoteca ganhe essa consciência. Espero. Por isso, precisamos "brigar por justiça e por respeito", como diz Seu Jorge. Estamos juntos!

"A carne mais barata do mercado é a carne negra" - (Seu Jorge)

Leia os outros textos sobre Consciência Negra:
1) http://www.aprenderalemao.com/2014/11/negro-brasileiro-na-alemanha-haut-por.html
2) http://www.aprenderalemao.com/2014/11/negra-brasileira-na-alemanha-irmaos-de.html

Negra, brasileira, na Alemanha: Irmãos de cor na Alemanha por Cris Oliveira

Irmãos de cor na Alemanha
Cris Oliveira

Quando decidi vir pra Alemanha há mais ou menos 12 anos a coisa que mais me preocupava era como eu enfrentaria o racismo. Tinha certeza que quando chegasse aqui iria ter de passar por situações desagradáveis, só não sabia como elas se manifestariam e como me defenderia. Mas estava decidida a vir. Meu futuro marido estava aqui e me garantia que não precisava ter medo, que existia muito racismo aqui sim, mas que a gente se adapta, se fortalece, luta contra e aprende a viver com isso. No final das contas o amor falou mais alto e acabei vindo com medo e tudo.

Logo que cheguei, talvez por causa da minha expectativa anterior, me surpreendi. Andava meio na defensiva, com medo dos ataques que poderiam vir de qualquer lugar inesperado, mas com o passar do tempo fui percebendo que as situações desagradáveis para as quais eu me preparava tanto nunca vinham. Pelo contrário, comecei a notar que muitos dos alemães que eu encontrava por aí sabiam muito mais do Brasil, sem nunca terem ido lá, do que eu sabia da Alemanha apesar de já estar vivendo aqui. Percebi também que muitos tinham um interesse genuíno pelo Brasil, sua história e sua gente. Comecei a relaxar e perceber que os monstros que eu esperava encontrar aqui não andavam assim espalhados por toda parte e que essa terra estava passando por um processo de mudança impressionante, se tornando cada vez mais internacional, aberta e tolerante. 

Comecei a ver reconhecidas certas características minhas que no Brasil ou passavam despercebidas ou eram logo menosprezadas mesmo, como meus olhos escuros, a cor de minha pele e principalmente meu cabelo. Nunca fui chegada a chapinha ou alisamentos simplesmente porque me irritava ser dependente de qualquer coisa no meu dia a dia. Meus cabelos sempre foram mais pro natural por questão de praticidade mesmo, mas confesso que de vez em quando cedia a pressões da família (“menina, que cabelo doido, vai dar um jeito nisso”; era uma das coisas que eu ouvia das superbem intencionadas mulheres da minha família) e acabava dando um relaxamentozinho aqui outro ali. Aqui na Alemanha aprendi a gostar genuinamente de minha imagem no espelho, inclusive do meu cabelo “doido” e eu serei pra sempre agradecida a esse país por isso. 

Depois de ouvir incontáveis elogios a gente acaba se convencendo de que não há nada de errado com a gente e isso é maravilhoso. É um grande alívio quando percebemos que podemos escolher mudar alguma coisa em nossa aparência, mas não nos sentirmos forçados a mudar nada por uma mera questão de aceitação. Esse é o ponto: assim que cheguei a Bremen, eu como negra, me senti aceita e isso foi fundamental pra minha história aqui neste país.

Infelizmente a fase do namorinho apaixonado um dia chega ao fim em qualquer relação e a minha com a Alemanha não podia ser diferente. Passado o primeiro momento de encantamento, comecei a perceber que aqui as experiências de negriture variam muito e nem sempre as de outros negros com os quais eu convivi aqui foram assim tão positivas quanto as minhas. Prestando mais atenção e conhecendo mais pessoas, acabei notando que o racismo aqui se manifesta de forma muito complexa e em muitos momentos ele fica até difícil de identificar por ser confundido com outras coisas. Ou seja acaba parecendo muito com o que acontece no Brasil.

Hoje em dia, com o olhar mais crítico de quem já passou da fase de encantamento com o novo país, percebo que quanto mais escura a cor da pele maior o racismo enfrentado. A origem também é um fator importante. Todo mundo ama um negro latino, mas esse amor nem sempre se estende pros africanos. O preconceito aqui se manifesta, pelo menos pra mim, mulher brasileira, negra de pele não tão escura, de forma bem cordial. Eu entro em um lugar e as pessoas já esperam que eu seja a atração da festa. Todos acham que eu só vivo feliz. Que sei cantar, dançar, que sinto frio o tempo todo, que venho do morro, que sou supersensual e só penso naquilo. 

Na verdade, não me incomodo quando alguém tem essa imagem de mim. Essas só são primeiras impressões que podem ser descontruídas quando se conhece alguém melhor. O que incomoda mesmo é perceber que elas só têm uma imagem, e que essa imagem é tão reduzida e rígida que acaba me limitando também. É um saco ter sempre que conversar sobre essas mesmas coisas aí, simplesmente porque muita gente não entende que existe mulher negra brasileira que não sabe dançar, que não entende nada de futebol, que não acha o frio tão horrível assim e que não está o tempo todo tentando seduzir alguém.

Eu tenho a sorte de conviver com pessoas de mente mais aberta e reflexiva. Já passei por umas situações esquisitas, mas foram poucas. Enquanto isso tem gente que tem de lidar todos os dias com coisas muito piores como com o fato de sempre serem tratados como estrangeiros apesar de terem nascido aqui, com os olhares insistentes que ou desconfiam ou tem uma curiosidade invasiva e com as oportunidades de emprego mais escassas todos os dias. Esse é o racismo nu e cru dispensando qualquer cordialidade.

No meio de tudo isso a gente acaba reconhecendo nossos iguais. Pessoas, que como a gente sofre com as mesmas coisas e por isso entendem exatamente porque agimos como agimos. Por isso não é raro que caminhando pelas ruas de Bremen de vez em quando se encontre outros negros e negras que do nada se cumprimentam. Quando isso aconteceu comigo pela primeira vez, respondi a saudação, mas achei estranho. Sendo soteropolitana, se eu sair por aí saudando cada negro igual a mim que encontrar na rua, vou passar o dia inteiro só dizendo “oi”. Até que um dia uma negra, até meio parecida comigo, passou por mim e me cumprimentou de uma forma que me fez entender tudo. Ela sorriu e disse “Hi, sister”. O que pra ela foi somente um cumprimento, pra mim significou muito mais. Queria dizer estamos aqui nesse país cheio de pessoas diversas, mas existe algo em mim e em você que nos separa de muitos deles ao mesmo tempo que nos conecta com muitos outros de lugares que eu e você nem podemos imaginar. Eu vejo você e você me vê, mas pra ser visto muitas vezes é preciso passar por muita coisa e viajar pra muito longe. Desde então toda vez que encontro um outro preto ou preta por aí, não hesito em sorrir e dizer “oi irmão/oi irmã” e pensar comigo mesma “estamos aí. Estamos aqui”.

Leia os outros textos sobre Consciência Negra:
1) http://www.aprenderalemao.com/2014/11/negro-brasileiro-na-alemanha-haut-por.html
2) http://www.aprenderalemao.com/2014/11/vida-na-alemanha-racismo-na-alemanha.html

Negro, brasileiro, na Alemanha: Haut - por Maurício Virgens

HAUT

Essa semana como de praxe eu estava vendo o que meus amigos do facebook postavam... E me deparei com umas fotos de uma conhecida minha de lá da Bahia.... Bastante maquiada e "produzida" até o último fio de cabelo (alisado, por sinal!), eu notei porém que nos selfies a pele dela estava mais clara. Na verdade não era a primeira vez que eu havia notado isso. Na outra ocasião eu cheguei a comentar pessoalmente minhas observações, cheguei a dar uma dica pra ela de onde comprar uma base de acordo com nossa quantidade de melanina (maquiagem da mesma marca que eu uso quando estou trabalhando no palco). Masss... Ela se explicou... "Não... É que eu tenho uma doença de pele e daí eu uso uma base mais clara pra escondê-la..."

Doença de pele. Aham... 😒

Essa sensação de estar com uma doença de pele eu já tive algumas vezes na vida. Uma das primeiras e mais marcantes foi lá nos meus dezoito anos, quando um novo shopping pra classe alta estava sendo inaugurado em Salvador, o Shopping Barra. Eu e minha irmã nos candidatamos para trabalhar numa loja pra grã-finos chamada Chocolate. Alguns de vocês provavelmente não têm ideia do que significava a expressão "boa aparência" em um anúncio de jornal naquela época, mas... Como nós dois éramos conscientes de nossas belezas afrobrasileiras (tínhamos aqueles penteados de Grace Jones, roupas tipo negões de Nova Iorque... éramos até manequins... Era moda naquela época, não riam!)... Então fomos lá apresentar nossos currículos que também não deixavam nada a desejar para recém-graduados de escola particular.

Passamos pela seleção curricular, fizemos uma bateria de testes de matemática, de português, de contabilidade básica, físicos, psicológicos... Até que na última fase, a funcionária da empresa, não tendo mais nenhum argumento que pudesse embasar alguma falta de qualificação nossa pra ser vendedor de loja, nos disse finalmente que não nós tínhamos o perfil da empresa. Perguntamos que perfil era aquele... Ela olhou pra a nossa pele. Doentes de pele não satisfazem perfil de loja de grã-fino. Danke für den Hinweis!! 😳

Passaram-se alguns anos. Eu já estava cursando arquitetura na UFBA. E ocorreu de minha turma viajar para São Paulo, creio que para um congresso de arquitetura. Comprei minha passagem de avião parcelada em juros a perder de vista... Chegamos todos no aeroporto um pouco em cima da hora para pegar o vôo, que por estar lotado, fomos alocados na primeira classe (até hoje eu não entendi o porquê daquele upgrade gratuito...). Estávamos então todos eufóricos, nos sentindo ricos e famosos... Até quando a aeromoça, ou melhor (como se diz na primeira classe) a Stewardess começou a fazer a contagem dos passageiros, e ao me ver sentado ali naquela poltrona de couro, parou e fez uma expressão de? 😒... Isso mesmo! De quem está vendo alguém com uma doença de pele. 

Dito e feito. Ao fazer o serviço de bordo, me serviu por último(!!) e para arrematar o tratamento VIP, me deu um prato com comida estragada. Chamei-a: "Com licença, a comida está estragada, me traga uma outra, por favor!"... "É a última que temos, senhor!" - com um sorriso sarcástico... "Então pode levar de volta, obrigado!", respondi me sentindo o cocô do cavalo do bandido preto que nem apareceu no filme de cowboys caucasianos.

Se não são sadios de pele, que comam comida estragada! Parafraseando a frase atribuída erroneamente(!!) a Marie Antoinette "S'ils n'ont plus de pain, qu'ils mangent de la brioche!"


Eis que anos depois, tive aqui na Alemanha um déjà-vu.

Eu tinha um compromisso profissional em uma cidade a quase 4 horas de distância de Colônia, onde moro, e pra isso acordei bastante cedo. Só que por azar (ou por ansiedade) me levantei com aquela dorzinha de cabeça querendo começar... Botei então meus óculos escuros e passei numa farmácia antes de pegar meu transporte. Entrei na loja e me dirigi direto ao balcão quando percebi que uma das atendentes já me media dos pés à cabeça... Com aquele certo olhar de quem está vendo um? 😒... Isso mesmo!! Um doente de pele!

Pensei: "Curioso! É raro eu receber este tipo de olhar assim tão explícito aqui na Alemanha... Ela não se deu conta que eu apesar dos óculos escuros a estou vendo... Hmmm... É nela que eu vou comprar minha aspirina!". Dito e feito. Foi intrigante ver suas expressões faciais irem se mudando ao tempo em que me atendia e percebia meu nível de alemão, minhas "boas maneiras", minha carteira que (por coincidência ao contrário de outros dias!!!) estava relativamente gorda... Eu me senti como naqueles filmes de temática religiosa nos quais as feridas dos leprosos vão desaparecendo pelo toque de algum santo... Senti que minha pele se curou em dois minutinhos de atendimento.

Doença de pele se cura com domínio do alemão e boas maneiras? Será que foi isso? 

Pra lhes dizer a verdade, nesta altura de minha vida... Mir ist wurst! Pra mim tanto faz como tanto fez a resposta a essa pergunta... Eu me amo como eu sou. Eu amo ser preto. Amo minha pretitude, amo minha negritude, amo minha baianidade nagô. Me sinto muitíssimo confortável em minha própria pele... meu olhar sobre minha ancestralidade e minha cultura afrodescendente são extremamente saudáveis.

Sim, Mauricio... Mas dá pra ir ao ponto da questão, bitte? Danke!

Ok, Leute... Seguinte. Estou passando mais uma semana da consciência negra em terras alemãs... Minhas reflexões sobre ser afroconsciência porém não são coisas de uma semana... Elas fazem parte de meu dia a dia. Ao contrário de minha juventude, quando volta e meia eu ouvia "mas você não é preto/negro... Você é moreno!", aqui na Alemanha não tem meias palavras quando se trata de identificação étnica. Eu adoro ser enxergado, visto, tratado como afrodescendente, como preto. Sem maquiagens, sem mesticismos, sem teorias sobre "boa aparência" e sobretudo, sem morganfreemismos. (Sim, estou falando daquele excelente ator African American que propõe que se deixe de celebrar a consciência negra, que se esqueça que existem negros e brancos como solução para o racismo no mundo. Pra vocês verem que como cientista social ele é um excelente padeiro).

Na última vez que estive em Salvador eu passei novamente no Shopping Barra, e em outros shoppings com lojas pra grã-finos... A tal butique Chocolate já não existe há anos... Deve ter falido... Ou a dona muito provavelmente se mudou pra Miami. Mir ist wurst... O que vocês não imaginam é como me foi prazeroso ver funcionários pretos e pretas lindíssimos trabalhando nas lojas. Pretitude linda e afrocentrada. Eu sei que ainda é pouco. Mas não posso deixar de comparar com o nada de quando eu tinha dezoito anos, onde havia o estúpido consenso da doença de nos considerar doentes de pele.

Mas então vamos salvar o resto do mundo, vamos sair às ruas, levantar bandeiras, vamos desinfetar o outros desta doença de "ver doença na pele não-branca".... We are the world.... We are the children, we are the ones who make a brighter day sOHWAIT!!!!! Es tut mir Leid, mas não tem como salvar os pacientes terminais! Existem doentes sociais que estão em estado crônico sem possibilidade alguma de cura. Ainda mais sendo o racismo uma doença social com "predisposição genética".... 

Como é que é?

Desenhando: há séculos atrás, existia uma família branca e feliz que via a "pele escura" como defeito/sujeira/imperfeição/negatividade. Aí eles se amaram e procriaram... E seus filhos aprenderam pelas historinhas de seus pais e avós os mesmos conceitos sobre "pele escura". E eles se amaram e eles também procriaram... Um dia, o rei e a rainha perceberam que ao tempo em que se multiplicavam viam que manter esses conceitos sobre "pele escura" garantia o seu poder em todo o reino. Então eles declararam "pele escura" como uma doença fatal! Mas como a rainha era muito esperta ela disse: "não podemos abrir o jogo, senão esses "peles-escuras" vão se insurgir e nos tirar do poder... Vamos fazer de conta que tá tudo bem?" E todos os seus súditos regozijaram com a inteligência de seus soberanos... E desde então tentam viver felizes para sempre.

Eu acredito porém, que a realidade fora dos contos de fadas apresenta um futuro desanimador para o "rei e a rainha". É somente questão de tempo até os "genes" virarem recessivos de geração em geração até que em algum futuro próximo nasçam pessoas sãs e salvas... Até lá, todos os pacientes terminais já aussterben (dá uma googlada pra ver o significado 😉)

Mas vamos ser otimistas. Talvez para alguns valha realmente a pena um tratamento de choque. Eu, por exemplo, já salvei três vidas nestes meus 20 anos de internet. Mesmo convivendo involuntariamente com um ou dois "casos perdidos", uma estatística pra mim animadora, pois os "curados" têm potencial multiplicador de saúde social. 

"É, mas você não vive a realidade brasileira, você blá blá blá mimimimi whiskas..."

Talvez você tenha razão. A distância da realidade brasileira tentou anos a fio "qualificar" minha pele como doença, e por caridade judaico-cristã a chamavam de "pele morena"...

"Ohhh... Você não é doente não, só está com uma gripezinha...!" 😱

... talvez o afastamento deste ar pseudo-europeu que vocês na terrinha brasilis respiram tenha me curado.

A estrutura alemã me dá a única possibilidade de ser quem eu sou. E como eu amo ser preto... Logo minha vida aqui, em comparação com a no Brasil, está sendo sopinha no mel. 

Uma curiosidade pra concluir... Escrevi este texto um dia inteiro, e entre um ou outro parágrafo eu tive que ir dar uma aula de canto...  No caminho de volta pra casa, entrei no metrô, e notei que havia fiscais... (Diferente do Brasil, aqui não existem catracas. As máquinas que emitem tickets estão à disposição para o passageiro honesto comprar seus bilhetes. Acontece porém de vez ou outra aparecer um funcionário à paisana (ou não) para fazer a fiscalização. Como já disse uma vez numa outra crônica, a expressão alemã para "viajar sem bilhete" é "schwarz fahren".)

... Eis que hoje havia um funcionário da companhia de transportes com a pele "negra como a noite" controlando a validade dos bilhetes dos passageiros. De súbito pensei... 

"Wie geil ist das denn! Ein schwarz-wie-die-Nacht-Kontrolleur auf der Suche nach Schwarzfahrern! (Que irado!!! Um fiscal preto como a noite à procura de passageiros viajando no preto!)

... O rapaz era belo, parecia um príncipe africano. Ele chegou pra mim, me olhou e sorriu. Um olhar de saudável para saudável. Em um átimo de segundo nos identificamos por nossas peles sem doenças e nos vimos socialmente com saúde pra dar e vender. Sorri de volta, mostrei meu bilhete e continuei a observá-lo andando calma e elegantemente pelo corredor do metrô... Um príncipe, sem dúvida!

Cheguei em casa com uma sensação maravilhosa de pertencer a uma irmandade preta. Só nós, pretos e pretas com saúde, podemos saber o que significa encontrar um/a outro/a preto/a que nunca vimos e nos sentir num ilê. Estejamos em qual país for... Nos conecta a certeza de que nossas histórias pessoais não são diferentes. A consciência de que somos sadios de pele é o que nos une.

Doença de pele... Aham... Nenhum olhar doente racista vai conseguir tirar a saúde de nossas peles!

Eu já chamei o SAMU pra irmã que usa maquiagem em tom mais claro por pensar estar com doença de pele... Acredito que ela estará se convalescendo em breve... Mas é pra nós, afrocentrados, irmãos e irmãs de peles sadias e ululantemente pretas, sem maquiagens, sem mentiras históricas, óbvias nas realezas de nossas ancestralidades africanas que eu dedico essa crônica de 20 de novembro. 


14 de novembro de 2014

Como melhorar o alemão através de leitura

1) Verifique o nível do texto
Antes de entrar em depressão por não entender nada e achar que o problema é você, pode ser que o texto esteja muito difícil para o seu nível de alemão. Como se sabe isso?
Estudiosos dizem que um texto está no nível correto de dificuldade se ele estiver no nível x + 1. O que seria esse x + 1?
Bem "x = tudo o que você entende ou sabe num idioma" e esse "1" quer dizer que ele deve ser um pouquinho mais difícil do que isso.
Tem gente que só fica feliz ao entender um texto completamente, palavra por palavra, sem usar o dicionário. Mas pra falar a verdade, se você entender realmente TUDO de um texto, o texto é FÁCIL demais para você. Se você quer aprender através da leitura, o texto tem que ter algumas palavras novas, tem que ter alguma coisa que você só conseguiu entender através do contexto, tem que ter alguma coisa a aprender. Ou seja, não adianta estar no B1, pegar textos do nível A1 e sair por aí gritando "Uhuuuuuu, entendi tudo". Então lembre-se: um texto está no seu nível quando ele for x + 1.. ou seja, você tem que entender quase tudo de forma que você não precise parar muito pra olhar no dicionário, mas também pode ter algumas palavras desconhecidas.

Vejamos o exemplo abaixo:
Eu postei esse texto no Facebook recentemente. Vários leitores disseram que entenderam quase tudo, faltaram só algumas palavras (provavelmente "bestaunen", "flauschig" e "schnappen"). Bem, se você entendeu todo o resto, esse texto está no seu nível e as palavars que faltam você pode procurar no dicionário depois. Se você entendeu só metade do texto, ele ainda está acima do seu nível. Se você entendeu TUDO, o texto está fácil demais e você precisaria de outros textos para aprimorar o seu alemão.

A pergunta que não quer calar: Como achar textos só do seu nível?
1) Nos livros didáticos: se você souber qual o seu nível (A1, A2, B1 etc.) tenter ler os textos do próprio livro. Caso você já tenha lido todos os textos do seu livro, procure outros livros didáticos (numa biblioteca, por exemplo) apenas para ler outros textos. Se os textos do seu livro didático são muito difíceis para você só há duas explicações possíveis:
a) Os autores do texto realmente não seguiram a lógica do x+1 e colocaram textos acima do seu nível.
b) Você está frequentando um curso acima do seu nível verdadeiro. Talvez seja necessário voltar um nível para ficar no nível certo de leitura. Ou então você está no nível certo do curso, mas não tem se esforçado para aprender palavras novas e se confia sempre no dicionário.
2) Livros paradidáticos: Há livros com leituras fáceis. Tente comprar algum. Já dei dicas de leituras facilitadas aqui.
3) Notícias facilitadas: Para ler notícias com linguagem facilitada, indico o site http://www.nachrichtenleicht.de/. Procure notícias sobre as quais você já tenha uma ideia antes de ler, assim você poderá entender mais pelo contexto. Mesmo assim, se for muito difícil (um texto é difícil demais se você precisar consultar demais o dicionário), continue estudando alemão e espere aumentar mais o seu vocabulário. Procure textos mais fáceis.

2) Compre livros bilíngues
Essa dica vale especialmente para alunos mais avançados no idioma (mas também para quem já terminou o B1, pelo menos). Há algumas editoras que lançam livros bilíngues, inclusive em português-alemão. Os livros bilíngues (por exemplo: português/alemão) trazem o texto em alemão numa página e em português na outra. Assim você pode ler nas duas línguas simultaneamente.
Se seu interesse for aprender/melhorar alemão, sugiro que leia primeiro o texto em alemão e só depois confira a tradução em português para ver se entendeu tudo.
Caso não encontre um livro bilíngue, você poderá também comprar dois livros, um em alemão e um em português e lê-los paralelamente.


Mas atenção:
- As traduções de obras literárias nunca são feitas literalmente. Ou seja, não espere encontrar cada palavra tal e qual na tradução. O tradutor tem a liberdade de mudar um pouco a ordem dos termos para que faça mais sentido na outra língua. Mesmo assim, as traduções de textos literários costumam ser bem próximas ao texto original.

Quer dicas de livros bilíngues alemão-português? Aqui vão algumas: esse, esse, esseesse ou esse, por exemplo.

3) Não pare a leitura a cada palavra desconhecida
Se você for desses que se desespera a cada palavra desconhecida, tenho uma coisa a pedir: PARE! Pare com isso já. Se até na nossa língua materna existem palavras que desconhecemos, por que você acha que tem que entender TODAS as palavras? A leitura detalhada, ou seja, aquela que requer o entendimento de 100% do texto, só é apropriada em situações nas quais for extremamente importante entender tudo: por exemplo, se o texto que você estiver lendo for para a prova da faculdade ou se você estiver lendo uma bula de remédio buscando uma informação sobre a sua posologia.
Na maioria dos outros casos, dá sempre para ignorar certas palavras sem perder o sentido do texto.

Por exemplo:
Das grüne Haus, das wir gestern gesehen haben, ist außerordentlich schön. 

Se você parou na palavra außerordentlich, mas entendeu todo o resto da frase, você, de fato, ENTENDEU a frase. Em vez de parar a leitura, eu sugiro que você marque essa palavra (sublinhando, por exemplo) e continue lendo o texto. Deixe para verificar essas palavras só depois de terminar a leitura. Assim, a leitura continua sendo agradável e você aprenderá novas palavras depois, caso se interesse em aprendê-las.

4) Leia as frases/os parágrafos sempre até o fim
Para entender um texto, é necessário sempre analisar o conjunto da obra, não só cada palavra. Mais uma vez: não se desespere ao não entender uma palavra. Continue lendo o texto para ver se você conseguirá mais tarde inferir o significado através do contexto.

Outra coisa importante: alemão é uma língua que deixa partes importantes da oração (como verbos e prefixos verbais) para o fim da oração. Parar uma frase no meio pode ser fatal, pois a informação mais importante pode estar justamente no fim.

Das kommt nicht auf seine Entscheidung...
Se você ficar traduzindo o começo da frase acima mentalmente como "Isso não vem ao seu..." e parar a frase no momento em que aparecer uma palavra desconhecida (Entscheidung, por exemplo) e esquecer de ler o resto da frase (Das kommt nicht auf seine Entscheidung an.), a frase poderá não fazer sentido... no caso, ankommen significa "depender".

Mesmo em frases curtas, o entendimento da frase pode ser prejudicado, caso você não identifique os prefixos verbais:

Er hat vor zu schlafen. Muita gente vai ficar confusa, tentando entender essa frase. Uns vão achar que quer dizer "Ele tem que dormir" outros vão pensar que é alguma coisa "antes de dormir", mas na verdade se trata do verbo separável vorhaben, que quer dizer "pretender" - Ele pretende dormir. (Antes que me perguntem: sim, é normal terminar a frase já antes do infinitivo com zu)

5) Estude o Präteritum
Em textos literários, jornalísticos e científicos, é normal o uso do Präteritum. Mesmo que seja usado pouco na linguagem falada, é importante conhecer ou, pelo menos, reconhecer suas formas.

Quando o Pequeno Príncipe encontra a raposa, por exemplo, vemos vários exemplos do Präteritum:
In diesem Augenblick erschien der Fuchs.
"Guten Tag", sagte der Fuchs.
"Guten Tag", antwortete höflich der kleine Prinz, der sich umdrehte, aber nichts sah.
(...) "Komm und spiel mit mir", schlug ihm der kleine Prinz vor

É importante reconhecer que "schlug...vor" vem de "vorschlagen" e que "sah" vem de "sehen". Mesmo que depois você não saiba usar essas formas, é bom treinar para reconhecê-las nos textos.

6) Aprenda palavras novas através da interpretação das partes
Existem muitas palavras que podem parecer "novas" a princípio, mas que são fáceis de serem compreendidas caso você entenda as partes que a formam. Isso se aplica especialmente a palavras compostas, mas também a outras palavras.

Sie haben sich tagelang darüber unterhalten.

Digamos que você esteja vendo a palavra tagelang pela primeira vez. Que tal dar uma olhadinha nas partes dela? Provavelmente você conhece a palavra Tag (dia) e sabe que seu plural é Tage (dias). A palavra lang também você conhecerá provavelmente como o adjetivo longo. Bem, mesmo sem olhar no dicionário você poderia chegar à interpretação dessa palavra como "ao longo dos dias". A palavra quer dizer "dias a fio, por vários dias". Existem também variantes como "wochenlang" e  "jahrelang". Eu sei que nem todo mundo consegue fazer esse tipo de interpretação, mas antes de olhar num dicionário, veja se você mesmo(a) não consegue interpretar a palavra.

Essa capacidade de inferir significados não cai do céu. É necessário ter um bom repertório de raízes germânicas bem como de prefixos e sufixos. Por exemplo: Das kann ich mühelos verstehen. 
Digamos que você nunca tenha ouvido a palavra mühelos, mas já tenha conheça a palavra Mühe (esforço), fica mais fácil entender a palavra quando se sabe que o sufixo -los quer dizer (sem, ausente de). Ou seja, mühelos = sem esforço. Se você vir a palavra "Bemühungen" e souber o sentido dos prefixos e sufixos, não será dificíl perceber o significado.

P.S. Eu sei que nem todo significado das palavras se obtém através da intepretação das partes, mas na maioria dos casos, sim, portanto, a dica continua sendo útil.

Para leitores avançados:
7) Traduza textos da sua área de estudo ou de interesse
Existem muitos e muitos textos em alemão sem tradução para o português. E você pode aprender alemão traduzindo-os. Esse tipo de aprendizado através da tradução não é muito indicado para quem tem conhecimento zero do idioma. Mesmo quando a pessoa já tem um bom nível no idioma, pode ser bastante chato e desafiador traduzir textos complicados. Conheço várias pessoas que aprendem alemão para ler obras clássicas de filosofia, política, psicanálise,  etc. no original.

Um texto de Freud. Quer tentar?

DAS TRAUMMATERIAL – DAS GEDÄCHTNIS IM TRAUM
Daß alles Material, das den Trauminhalt zusammensetzt, auf irgendeine Weise vom Erlebten abstammt, also im Traum reproduziert, erinnert wird, dies wenigstens darf uns als unbestrittene Erkenntnis gelten. Doch wäre es ein Irrtum anzunehmen, daß ein solcher Zusammenhang des Trauminhaltes mit dem Wachleben sich mühelos als augenfälliges Ergebnis der angestellten Vergleichung ergeben muß. Derselbe muß vielmehr aufmerksam gesucht werden und weiß sich in einer ganzen Reihe von Fällen für lange Zeit zu verbergen. Der Grund hiefür liegt in einer Anzahl von Eigentümlichkeiten, welche die Erinnerungsfähigkeit im Traume zeigt und die, obwohl allgemein bemerkt, sich doch bisher jeder Erklärung entzogen haben. Es wird der Mühe lohnen, diese Charaktere eingehend zu würdigen.

Então muita hora nessa calma! Antes de se desesperar, faça as seguintes perguntas:
1) Você já tentou ler um texto do Freud antes em português? A leitura foi fácil? Se foi difícil, ela também será difícil no original.
2) Você tem uma boa noção dos fenômenos gramaticais e estruturais da língua alemã? Ou seja, você consegue reconhecer como uma oração é formada, qual palavra vem primeiro, qual palavra aparece no fim e como as palavras se ligam umas às outras? Se sua resposta for NAO, pode ser bastante complicado entender um texto mais complexo.
3) Você está familiarizado com o linguajar dessa área de estudo? Ou seja, você já leu outros textos em língua materna sobre o mesmo tema? (Não adianta querer ler textos de Marx sem nunca ter lido nada sobre o Comunismo, né?)
4) Não se preocupe: as pessoas não costumam falar alemão assim. A linguagem científica costuma ser complicada mesmo em qualquer idioma.

Antes de sair traduzindo textos, veja se você está familiarizado com esse tipo de texto no seu próprio idioma. Um advogado terá menos dificuldade em traduzir um texto jurídico do alemão pro português do que um leigo. Portanto, caso você queira aumentar seu vocabulário na sua área de estudo, você pode traduzir textos (mesmo aqueles para os quais já exite uma tradução) como exercício. Nesse caso, a leitura do texto vai ser mais lenta do que a leitura por diversão. Dependendo da complexidade do texto, você pode precisar de dias para traduzir um capítulo do livro que queira ler, mas esse processo de traduzir pode te dar mais segurança para ler outros textos mais tarde. Faça isso como exercício.

Veja que as frases de textos científicos são mais longas (o primeiro período do texto tem mais de duas linhas). É importante perceber onde uma oração começa e a outra termina. Além disso é importantíssimo procurar palavras (conjunções, pronomes etc.) que se referiam a outros termos do período. Então vá analisando as frases com calma:

Daß alles Material, das den Trauminhalt zusammensetzt, auf irgendeine Weise vom Erlebten abstammt, also im Traum reproduziert, erinnert wird, dies wenigstens darf uns als unbestrittene Erkenntnis gelten.

No período acima, o pronome dies (isto) se refere a algo que já foi citado antes. Mas o que já foi citado antes é um período complexo, com muitos verbos, vírgulas etc. Para entender melhor essa primeira frase, podemos olhar o diagrama abaixo:


O pronome dies se refere a tudo o que foi dito antes. Há três informações sobre o "Material" que compõe (zusammensetzt) o contéudo do sonho (Trauminhalt). A oração principal é a de baixo. As duas outras orações são uma explicação (ou melhor, uma informação adicional) desta principal (iniciadas por also). E tudo isso que foi dito já deve ser considerado (gelten) pelo menos (wenigstens) como um reconhecimento incontestável (unbestrittene Erkenntnis).

Tente fazer isso com seus textos da faculdade ou qualquer texto do seu interesse. Tente traduzir uma ou duas páginas por dia, como exercício. Com frases longas, veja onde uma coisa começa e termina. Procure palavras que indiquem para outras partes da oração.

E você tem mais dicas de como melhorar o seu alemão através da leitura? Compartilhe nos comentários. 

1 de novembro de 2014

Títulos de filmes em alemão

DVDs com títulos em alemão
Bem, se não bastasse ter que aprender um idioma novo, chega um momento em que você está batendo um papo animado com seus amigos alemães e você quer dizer: "Você se lembra daquele filme "Curtindo a Vida Adoidado"?. Você para e pensa: "Putz! Como é o nome desse filme em alemão? Talvez em inglês ajude. Mas como é mesmo o nome desse filme em inglês?"
Se você já passou por essas situações, seja bem-vindo ao clube.

Na Alemanha, bem como no Brasil e em Portugal, os títulos dos filmes americanos nem sempre são traduzidos ao pé da letra. As produtoras/distribuidoras é que decidem qual título vai "colar" num determinado país onde o filme será distribuído. É por isso que, mesmo quando o idioma oficial é o mesmo (no caso do português) o título pode variar (e varia bastante!) entre o Brasil e Portugal, porque a distribuidora de cada país é quem decide qual o título melhor. Às vezes o mesmo ocorre com a Alemanha e a Áustria, por exemplo, mesmo que em menor quantidade.

Pois bem, aqui vão alguns exemplos que vão salvar as suas conversas com seus amigos sobre cinema (não só na Alemanha, mas também em Portugal / ou no Brasil) hehehe


Como vocês veem, eu dei prioridade aos filmes da Sessão da Tarde, né? Hahaha
Como se vê também, na Alemanha eles têm também o famoso costume de dar um subtítulo aos filmes (como em Police Academy). Um caso semelhante é o do famoso filme Ghost cujo subtítulo era "Do outro lado da vida" (no Brasil), "O Espírito do Amor" (em Portugal) e na Alemanha recebeu o subtítulo "Nachricht von Sam" (Notícia do Sam)

Aqui vão mais alguns exemplos: 


Na segunda lista há uma das piores traduções de títulos de filme que eu já vi. Eternal Sunshine of the Spotless Mind que foi brilhantemente chamado de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças em português é chamado de Vergiss mein nicht em alemão. O título é interessante, pois mostra o uso antiquado do verbo vergessen com o genitivo. (Hoje em dia ele é usado com o acusativo: Vergiss mich nicht!). Essa expressão ainda se manteve principalmente por causa do nome de uma planta conhecida como "Vergissmeinnicht" (Não-me-esqueças) que também deu título a poemas e músicas clássicas. 

As minhas dicas são:
- Sempre que gostar de um filme, aprenda o título original. Dizer o título em inglês (ou em outro idioma) pode ajudar.
- Depois disso, tente aprender o nome dos seus filmes preferidos em alemão. Não é uma questão de saber traduzir. Os títulos nem sempre são uma tradução.
- Ah, verifique também títulos de séries e desenhos animados também. Por exemplo, os Smurfs são chamados na Alemanha de Die Schlümpfe.

Para terminar, aqui vai uma pequena tabela com filmes brasileiros/portugueses e seus títulos na Alemanha.

E qual título de filme você achou mais estranho em alemão? Comente!