Quem é meu leitor fiel sabe que o meu método de estudar e ensinar línguas é quase sempre contrastivo. Ou seja, eu assimilo melhor as estruturas de uma língua comparando com outras línguas, seja esta a minha materna (português) ou com outras que já aprendi. Sei que nem todo mundo gosta disso, mas esse método funciona pra mim, então continuarei usado aqui no blog.
Um leitor do blog me chamou a atenção para uma discussão sobre o Plusquamperfekt que estava acontecendo na página do Facebook da revista alemão "Spiegel". A discussão é realmente interessante, por isso decidi publicar um pouco sobre o tema. Primeiro gostaria de esclarecer o que é o tal Pretérito Mais-Que-Perfeito (tanto em português quanto em alemão) e que funções ele ocupa na linguagem cotidiana.
O que as pessoas geralmente sabem sobre o Mais-Que-Perfeito é que se trata de um "passado do passado", ou seja, algo que aconteceu antes de uma coisa no passado e que é um tempo pouco usado. Então o que percebo da maioria dos alunos é: se é pouco usado, nem vale a pena aprender. Vamos conferir esses "mitos".
1) É um tempo pouco usado?
A impressão de que é um tempo raramente usado é culpa do ensino de português nas escolas brasileiras. Na escola, as crianças aprendem apenas o Mais-Que-Perfeito Simples.
fazer - eu fizera, tu fizeras etc.
dizer - eu dissera, tu disseras etc.
ser - eu fora, tu foras etc.
dançar - eu dançara, tu dançaras etc.
Realmente. Essas formas verbais são usadas quase que exclusivamente na linguagem literária. Nesse caso, poderíamos dizer que é "pouco usado". Mas o que muita criança não aprende na escola é que existe também o Mais-Que-Perfeito Composto. E esse é usado constantemente pelos brasileiros em suas conversas.
fazer - eu tinha feito, você tinha feito etc.
dizer - eu tinha dito, você tinha dito etc.
ser - eu tinha sido, você tinha sido etc.
dançar - eu tinha dançado, você tinha dançado etc.
"Ele tinha sido" também é o Mais-Que-Perfeito, só que Composto. Então na hora de tentar entender o Mais-Que-Perfeito do alemão, é bom conectar com algo que todos nós usamos, que é o Mais-Que-Perfeito Composto. Então esqueça por um momento o tempo literário e voltemos as atenções para o tempo composto.
A língua alemã só tem o Plusquamperfekt composto. Ele é formado com os auxiliares sein ou haben (para saber quando se usa sein ou haben, clique aqui) no Präteritum e com o Particípio Passado (Partizip II) do verbo principal.
Ou seja: eu tinha feito = ich hatte gemacht; eu tinha dito = ich hatte gesagt; eu tinha dançado = ich hatte getanzt.
De fato, o Plusquamperfekt é usado com menos frequência do que em português, até porque o seu uso é bem mais restrito. Mas isso eu vou explicar melhor agora.
2) O Mais-Que-Perfeito é o passado do passado?
Em alemão o Mais-Que-Perfeito é usado quando houver duas ações no passado numa mesma oração, sendo que uma delas tem que OBRIGATORIAMENTE ter sido CONCLUÍDA antes da outra. Nesse caso quase sempre as duas ações são ligadas pelo conectivo als (Quando). [Se tiver dúvidas sobre o uso de als, wann e wenn, clique aqui]
Repetindo: Conectivo als + duas ações no passado, sendo que ação no Plusquamperfekt é cronologicamente anterior à outra e tem que estar concluída, acabada, terminada.
Als der Vater zum Abendessen kam, hatten die Kinder schon alles gegessen.
Quando o pai chegou pro jantar, as crianças já tinham comido tudo.
Por que o Plusquamperfekt foi usado?
1) Houve duas ações no passado: "O pai chegou em casa", "As crianças comeram tudo"
2) A ação de "comer tudo" já tinha sido concluída, quando o pai chegou.
3) "Comer tudo" aconteceu cronologicamente antes do "pai chegar", portanto, fica no Plusquamperfekt.
Nesses casos, é fácil usar o Plusquamperfekt, pois ele se assemelha ao uso do português. Só que em português nós também usamos em casos em que essa anterioridade é entendida pelo contexto. Digamos que você queria mostrar um vídeo no Youtube para um amigo. Você mostra o vídeo e nos primeiros segundos do vídeo ele diz: "Ah, legal, mas já vi". Mas se você tocar o vídeo todo, é provável que ele diga "Ah, legal, mas já tinha visto". Esse uso do Mais-Que-Perfeito dá a ideia de que ele se refere a uma exibição do vídeo anterior à que acabou de acontecer. Os alemães, nesses casos, preferem usar o Perfekt e apenas dizer que eles já viram (e/ou quando). "Ja, toll, aber das habe ich gestern gesehen". Ou seja, o uso do Plusquamperfekt é bem mais restrito.
3) Afinal, se eu usar o Plusquamperfekt, vai soar estranho ou dá pra usar no dia-a-dia?
Dá pra usar, sim, nessas situações que mencionei antes (no ponto 2). O problema é que os alemães parecem sempre usar estratégias para não ter que usar o tal Plusquamperfekt. Uma coisa que percebi é que raramente usam quando o Plusquamperfekt é feito com o verbo sein. Para isso o jeito é parafrasear.
Em vez de dizer:
Als ich meine Eltern angerufen habe, waren sie schon abgereist. (Usando o Plusquamperfekt)
(Quando liguei para meus pais, eles já tinha saído de viagem)
Eles preferem dizer coisas como:
Als ich meine Eltern angerufen habe, waren sie schon weg. (Usando o Präteritum)
(Tradução livre: eles já estavam fora/longe)
Sempre que der, parafrasear é uma boa estratégia pra evitar o Plusquamperfekt. No caso do exemplos das crianças que tinha comido tudo, daria pra dizer algo assim.
Als der Vater zum Abendessen kam, war kein Essen mehr da.
Eu sinceramente não acho que ninguém te olhará como um ET se você usar o Plusquamperfekt (corretamente, claro!). Mas se puder parafrasear em conversas informais, é melhor. Na linguagem escrita forma, continua sendo usado nos casos citados.
Vamos agora à notícia da página Spiegel.
Tudo começou com essa postagem de uma notícia trágica:
O texto diz (Plusquamperfekt marcado de vermelho): "Die 19-jährige Berlinerin Maria P. war schwanger gewesen, als sie getötet wurde: Erst wurde ihr in den Bauch gestochen, dann wurde sie lebendig verbrannt."A notícia é triste. Trata-se um moça de 19 de anos de Berlim que estava grávida quando foi assassinada e queimada. Pois bem, só que um leitor zombou do uso do Plusquamperfekt.
Um leitor do blog me chamou a atenção para uma discussão sobre o Plusquamperfekt que estava acontecendo na página do Facebook da revista alemão "Spiegel". A discussão é realmente interessante, por isso decidi publicar um pouco sobre o tema. Primeiro gostaria de esclarecer o que é o tal Pretérito Mais-Que-Perfeito (tanto em português quanto em alemão) e que funções ele ocupa na linguagem cotidiana.
O que as pessoas geralmente sabem sobre o Mais-Que-Perfeito é que se trata de um "passado do passado", ou seja, algo que aconteceu antes de uma coisa no passado e que é um tempo pouco usado. Então o que percebo da maioria dos alunos é: se é pouco usado, nem vale a pena aprender. Vamos conferir esses "mitos".
1) É um tempo pouco usado?
A impressão de que é um tempo raramente usado é culpa do ensino de português nas escolas brasileiras. Na escola, as crianças aprendem apenas o Mais-Que-Perfeito Simples.
fazer - eu fizera, tu fizeras etc.
dizer - eu dissera, tu disseras etc.
ser - eu fora, tu foras etc.
dançar - eu dançara, tu dançaras etc.
Realmente. Essas formas verbais são usadas quase que exclusivamente na linguagem literária. Nesse caso, poderíamos dizer que é "pouco usado". Mas o que muita criança não aprende na escola é que existe também o Mais-Que-Perfeito Composto. E esse é usado constantemente pelos brasileiros em suas conversas.
fazer - eu tinha feito, você tinha feito etc.
dizer - eu tinha dito, você tinha dito etc.
ser - eu tinha sido, você tinha sido etc.
dançar - eu tinha dançado, você tinha dançado etc.
"Ele tinha sido" também é o Mais-Que-Perfeito, só que Composto. Então na hora de tentar entender o Mais-Que-Perfeito do alemão, é bom conectar com algo que todos nós usamos, que é o Mais-Que-Perfeito Composto. Então esqueça por um momento o tempo literário e voltemos as atenções para o tempo composto.
A língua alemã só tem o Plusquamperfekt composto. Ele é formado com os auxiliares sein ou haben (para saber quando se usa sein ou haben, clique aqui) no Präteritum e com o Particípio Passado (Partizip II) do verbo principal.
Ou seja: eu tinha feito = ich hatte gemacht; eu tinha dito = ich hatte gesagt; eu tinha dançado = ich hatte getanzt.
De fato, o Plusquamperfekt é usado com menos frequência do que em português, até porque o seu uso é bem mais restrito. Mas isso eu vou explicar melhor agora.
2) O Mais-Que-Perfeito é o passado do passado?
Em alemão o Mais-Que-Perfeito é usado quando houver duas ações no passado numa mesma oração, sendo que uma delas tem que OBRIGATORIAMENTE ter sido CONCLUÍDA antes da outra. Nesse caso quase sempre as duas ações são ligadas pelo conectivo als (Quando). [Se tiver dúvidas sobre o uso de als, wann e wenn, clique aqui]
Repetindo: Conectivo als + duas ações no passado, sendo que ação no Plusquamperfekt é cronologicamente anterior à outra e tem que estar concluída, acabada, terminada.
Als der Vater zum Abendessen kam, hatten die Kinder schon alles gegessen.
Quando o pai chegou pro jantar, as crianças já tinham comido tudo.
Por que o Plusquamperfekt foi usado?
1) Houve duas ações no passado: "O pai chegou em casa", "As crianças comeram tudo"
2) A ação de "comer tudo" já tinha sido concluída, quando o pai chegou.
3) "Comer tudo" aconteceu cronologicamente antes do "pai chegar", portanto, fica no Plusquamperfekt.
Nesses casos, é fácil usar o Plusquamperfekt, pois ele se assemelha ao uso do português. Só que em português nós também usamos em casos em que essa anterioridade é entendida pelo contexto. Digamos que você queria mostrar um vídeo no Youtube para um amigo. Você mostra o vídeo e nos primeiros segundos do vídeo ele diz: "Ah, legal, mas já vi". Mas se você tocar o vídeo todo, é provável que ele diga "Ah, legal, mas já tinha visto". Esse uso do Mais-Que-Perfeito dá a ideia de que ele se refere a uma exibição do vídeo anterior à que acabou de acontecer. Os alemães, nesses casos, preferem usar o Perfekt e apenas dizer que eles já viram (e/ou quando). "Ja, toll, aber das habe ich gestern gesehen". Ou seja, o uso do Plusquamperfekt é bem mais restrito.
3) Afinal, se eu usar o Plusquamperfekt, vai soar estranho ou dá pra usar no dia-a-dia?
Dá pra usar, sim, nessas situações que mencionei antes (no ponto 2). O problema é que os alemães parecem sempre usar estratégias para não ter que usar o tal Plusquamperfekt. Uma coisa que percebi é que raramente usam quando o Plusquamperfekt é feito com o verbo sein. Para isso o jeito é parafrasear.
Em vez de dizer:
Als ich meine Eltern angerufen habe, waren sie schon abgereist. (Usando o Plusquamperfekt)
(Quando liguei para meus pais, eles já tinha saído de viagem)
Eles preferem dizer coisas como:
Als ich meine Eltern angerufen habe, waren sie schon weg. (Usando o Präteritum)
(Tradução livre: eles já estavam fora/longe)
Sempre que der, parafrasear é uma boa estratégia pra evitar o Plusquamperfekt. No caso do exemplos das crianças que tinha comido tudo, daria pra dizer algo assim.
Als der Vater zum Abendessen kam, war kein Essen mehr da.
Eu sinceramente não acho que ninguém te olhará como um ET se você usar o Plusquamperfekt (corretamente, claro!). Mas se puder parafrasear em conversas informais, é melhor. Na linguagem escrita forma, continua sendo usado nos casos citados.
Vamos agora à notícia da página Spiegel.
Tudo começou com essa postagem de uma notícia trágica:
O texto diz (Plusquamperfekt marcado de vermelho): "Die 19-jährige Berlinerin Maria P. war schwanger gewesen, als sie getötet wurde: Erst wurde ihr in den Bauch gestochen, dann wurde sie lebendig verbrannt."A notícia é triste. Trata-se um moça de 19 de anos de Berlim que estava grávida quando foi assassinada e queimada. Pois bem, só que um leitor zombou do uso do Plusquamperfekt.
Esse é o novo estilo da Spiegel para ganhar leitores do Bild? Bild é um jornal conhecido pelo baixo nível das reportagens. |
A Spiegel respondeu que se tratava do tempo Plusquamperfekt, que era usado como o passado do passado. Crime: passado. Gravidez: Passado do passado.
Só que a justificar o seu uso, a Spiegel esqueceu de um detalhe: a menina estava ou não estava grávida quando foi morta? Se ela estava grávida, então não se trata de uma ação concluída. Mas se a gravidez já tivesse terminado, aí sim, poderíamos dizer que ela "tinha tido uma gravidez, mas não estava mais grávida".
Os leitores começaram a discutir sobre gramática e apontar o erro pra Spiegel. :
Ela estava grávida, por isso o Plusquamperfekt está errado. |
Outro leitor comenta o mesmo. A gravidez não era anterior ao assassinato, mas simultânea. |
Por fim, a conclusão é: Correto seria "Die 19-jährige Berlinerin Maria P. war schwanger, als sie getötet wurde". (A berlinense de 19 anos Maria P. estava grávida quando foi morta).
Pois bem, a Spiegel reconheceu o problema e agradeceu pela discussão e reconheceu que a gravidez não tinha sido concluída, mas sim interrompida com o crime. Só que no momento do crime, a gravidez ainda estava em curso.
Bem, alguns podem dizer. "Se até alemães cometem erros, imagina comigo". Não é bem assim. Estrangeiros cometem erros diferentes. Mas em toda língua há coisas pouco usadas na linguagem cotidiana que deixam as pessoas em dúvida. Não é à toa que há livros de gramática feito para falantes nativos. Nem todo nativo é um professor de língua. Nem todo professor de língua sabe tudo. Todos somos humanos e a língua é mais do que a gramática diz. Muito mais.
Espero que tenha ficado um pouco mais claro. Lembre-se: duas ações no passado, uma anterior à outra, sendo que a primeira ação já deve ter sido CONCLUÍDA. Um grande abraço
Explicação perfeita. Com o exemplo da Spiegel ficou ainda mais claro. Obrigada!
ResponderExcluirNossa estou aqui em Freiburg e caiu isso, tentei ler mas não entendir muito bem, com a mudança dobremos do inverno para a primavera estou meio mal e não consigo me concentrar. Mas vou guarda a sua página para ler depois , acho que nem a tarefa de casa vou fazer rsrsrrsrsr
ResponderExcluirVc tem vídeo no YouTube ?
Perfeito, como sempre! Obrigada!
ResponderExcluirDas ist unglaublich, wie du es einfach erklären kannst!!
ResponderExcluirDankeschön für alles!
Danke sehr!
ResponderExcluirEstou maravilhado com a qualidade e detalhismo dos textos desse site. Achei que o 3º lugar nos melhores sites de ensino de idioma é um posto muito injusto. Merecia o 1º sem dúvidas.
ResponderExcluirPerfeito!
ResponderExcluirMelhor blog na aprendizagem na língua alemã!
ResponderExcluirComo sempre sua didática é ótima ...Parabéns
ResponderExcluirRapazzz... explicação top de quem só pode ser top naquilo que faz! Já virei fã e salvei como favorito aqui viu. Parabéns!
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